Coluna: Pé no Asfalto
Autor: Walmor Carvalho
Em meio aos protestos e batidas de panela cada vez mais ruidosos contra a Presidenta Dilma, desde 2014 até agora, um velho fantasma volta a rondar a democracia brasileira. São homens e mulheres que acreditam que: o objetivo do governo é implantar a ditadura comunista no Brasil e na América Latina; que todas as instituições do governo estão perdidas para a corrupção e o aparelhamento; que o povo brasileiro está à mercê da fome, do desemprego e da insegurança pública; e que, por fim, a única solução é a volta dos militares ao poder - não através do golpe, mas por meio da chamada "Intervenção Militar".
Esse pessoal montou um acampamento batizado de Mário Kozel Filho - em
homenagem ao militar morto durante um atentado a bomba realizado pelo grupo
guerrilheiro VPR ao quartel do II Exército - bem no canteiro central da avenida
que leva seu nome, entre a Assembleia Legislativa e a sede do Comando Militar
do Sudeste, no Ibirapuera. Quando bati o olho naquele acampamento, numa tarde
qualquer de sábado, sabia que ia sair algum cachorro daquele mato bizarro.
Visitei o acampamento numa quarta-feira, dia 12 de Agosto, e fui recebido pelo
senhor Carlos Alberto Augusto, delegado aposentado de 71 anos que ficou feliz
em encontrar um jornalista independente para conversar e mostrar o acampamento.
Ficou ainda mais feliz ao saber que eu era formado pelo Mackenzie, tanto que
pegou meu bloco para anotar a indicação do "Livro do Parizi": a
biografia do ex-Mackenzista e brutal membro do infame Comando de Caça aos
Comunistas João Parizi Filho, que teria sido sequestrado logo após a Batalha da
Maria Antônia, em 1968, e torturado pelo próprio José Dirceu. Apesar de não se
considerar líder ou coordenador, foi Carlos que me apresentou aos membros
presentes do acampamento; Um ou outro vestia tons de verde oliva ou
camuflagens nas roupas.
O acampamento é pequeno e mantido estritamente por suprimentos trazidos
pelos militantes e por doações, cujo processo de recebimento é criterioso:
"As pessoas que vêm doar coisas, a gente faz uma restrição pra saber o
porquê de querer dar aquilo, porque não aceitamos nada de gente ligada ao
Partido Comunista, ao Crime Organizado, a partidos políticos". O local já
conta com cozinha, algumas camas, banheiro químico e um gerador à gasolina, que
os acampados fizeram questão que eu fotografasse para mostrar que "não
estavam roubando energia". Carlos contou que os membros do acampamento se
revezam e que são cerca de 70 pessoas, a maioria já entre os 40 e os 60 anos. E
isso é só o começo: "Esse aqui é o primeiro acampamento mas estão vindo
mais. Vamos fazer um no Cambuci, outro ali na base da Marinha na Sena
Madureira. E já temos um no Forte lá da Praia Grande [a Fortaleza de Itaipu,
sede do 2º Grupo de Artilharia Antiaérea], Santos, Porto Alegre...",
completa. Os presentes no ato da matéria eram cerca de 8 pessoas - dentre
estas, 3 mulheres -, que se revezavam na organização da cozinha e na limpeza.
Sobre o objetivo do acampamento, o ex-delegado conta: "O que me
deixa aborrecido é que todo jovem que existe na sociedade hoje desconhece o que
aconteceu. Foram doutrinados por teorias marxistas e leninistas para poderem
ser escravos da população também. Por isso, o objetivo deste acampamento é a
liberdade total, especialmente para a Imprensa". Imprensa esta que, em sua
visão, é "omissa e conivente com o crime": "A imprensa não
escreve aquilo que quer, escreve aquilo que os governantes mandam fazer. A
verba que eles recebem é grande e ficam sob os olhares do Governo
Federal". Porém, essa posição de confiança e liberdade à imprensa não se
manteve quando, no domingo 16 de Agosto, apareci para fazer mais umas fotos e exigiram que
eu anotasse meus dados pessoais, como nome e endereço, para quando
"precisassem dos meus serviços". Não contestei, mas anotei tudo
falso.
A conversa segue e, sobre o objetivo do acampamento, o ex-delegado foi
direto: "Estamos sendo governados pelo Crime Organizado, as instituições
estão corrompidas e a população está refém do crime. Nós somos nacionalistas e
estamos pleiteando junto ás Forças Armadas para que façam valer o artigo 142 da
Constituição Federal". E explica sua visão do artigo: "Quando o país
está totalmente desgovernado e sob a mão dos criminosos, as únicas pessoas que
podem decidir (sic), são as Forças Armadas". Vale lembrar que, em suas primeiras linhas, o Artigo 142 da Constituição Federal coloca as Forças Armadas sob autoridade suprema da Presidência da República, a mesma instituição que os ativistas querem depor.
Mas, afinal, o que seria a
tal "Intervenção Constitucional" defendida pelos ativistas e qual sua
diferença comparada a um golpe de estado? "O Golpe não existe nem nunca
existiu no Brasil. O Golpe mesmo está sendo articulado hoje em Brasília pelos
partidos políticos que estão querendo pleitear o Impeachment para colocar o
vice-presidente. Ai seria golpe porque é trocar seis por meia dúzia. Esses
políticos já estão no poder há muitos anos, e não tem mais condições de
governar o país, aí resta apenas as Forças Armadas porque ainda gozam de grande
conceito na sociedade". Discurso esse que é assombrosamente semelhante ao
que nos conduziu ao Golpe Militar de 1964, o qual também começou sob o pretexto
de uma intervenção a curto prazo, como Carlos me lembra logo em seguida:
"Não houve golpe, o que aconteceu foi que a sociedade exigiu providências
das Forças Armadas e é exatamente isso que estamos exigindo hoje". Ainda em 2014, porém, as Forças Armadas rechaçaram qualquer possiblidade de "intervenção" na democracia brasileira.
Em meio às fotos que eu ia fazendo do acampamento, Carlos vinha conversando
também sobre a questão dos imigrantes que vêm chegando ao Brasil nos últimos
meses, no que considera isso mais uma manobra do Governo contra o povo:
"Pra que importar gente da Nigéria, do Haiti sendo que já não tem emprego
nem comida aqui no Brasil? Sabe o que é isso? Ela tá importando imigrantes,
muita gente islâmica, para semear a discórdia no Brasil." Não muito
depois, porém, passou em frente ao acampamento uma delegação da Indonésia, a
caminho da cerimônia de abertura da feira internacional de educação World
Skills São Paulo 2015, no Ginásio do Ibirapuera, e Carlos - junto com outros
membros do acampamento - aplaudiram em meio a falas de "Parabéns! É isso
aí! Saiu da linha, bala!", em referência à execução dos brasileiros Marco
Archer e Rodrigo Goulart pelo governo indonésio por acusações de Tráfico de
Drogas.
Conversando também, perguntei a Carlos sobre a opinião deles sobre o
protesto pelo impeachment da presidenta, marcado para o domingo de 16 de Agosto, na
Paulista. Ele foi veemente de que seu grupo não participaria do ato: "Nós
vamos permanecer aqui no acampamento porque a Paulista vai ser um local mais
próprio para namorados. Essas pessoas que vão para a Paulista não são
patriotas, são torcedores da Seleção. Por isso eles usam as camisas da seleção
e não as cores do Brasil. Aqui, todos nós usamos o verde e o amarelo do Brasil
e as cores do Exército porque acreditamos que, acima da Seleção, vem a pátria e
que é preciso antes descobrir o Brasil do que o futebol e a cerveja."
Falei também com uma senhora que fazia coro às falas de Carlos, enquanto
se desdobrava entre as tarefas de organização da tenda. Segundo a própria, é
conhecida como “Gracinha Félix”. Tem 64 anos e estava vestida dos pés à cabeça
em roupa camuflada, no padrão do Exército Brasileiro. Para ela, "Isso [as
manifestações] é tudo ação política, porque nem todos eles sabem que não
existem condições de impeachment, que não tem condições do Cunha nem do Michel
Temer nem do Renan Calheiros assumir o poder porque todos eles estão
comprometidos na lava-Jato." Ela
lançou a seguinte pergunta: "Com tudo o que tá acontecendo no Brasil hoje,
existe solução que não sejam as Forças Armadas? Não existe, porque o três
poderes estão aparelhados. A grande maioria dos partidos são de esquerda. Nossa
posição é uma minoria. É tirar a Dilma de lá e ficar o resto corroendo as
estruturas. E se ficou comprovado de que ela cometeu [crime de] lesa-patria,
desviou dinheiro para outros países sem aval do Congresso, é sinal de que não
existe mais democracia. E como reverter esse quadro? Só através das Forças
Armadas."
Mas, afinal, de onde vem essa fé quase messiânica nas Forças Armadas? Uma fala de Carlos, dita no começo de nossa conversa, joga uma luz nessa onda de pessimismo generalizado: "Estamos chegando no Caos. Nosso judiciário está podre, o executivo podre e meio e a única instituição que ainda goza de muito conceito são as Forças Armadas. E tenho certeza de que as Forças Armadas não vai (sic) abandonar seu povo". Acontece que, em declarações recentes, o Alto-Comando do Exército negou qualquer possibilidade de tal "intervenção". Em entrevista ao periódico paranaense Gazeta do Povo, o General Comandante Militar do Sul Antônio Mourão afirmou, com todas as letras: "Uma das nossas missões é a garantia dos poderes constitucionais. (...) A gente deixa muito claro que o Exército, com as demais Forças Armadas, estará pronto para manter as instituições em funcionamento. O Exército não vai assumir o poder, não vai fazer nada disso. O que vai fazer é manter as instituições; garantir que o Executivo, Legislativo e o Judiciário funcionem".
O posicionamento dos acampados em relação às manifestações, porém, não se manteve. No domingo, em meio às bandeiras e camisas da Seleção, estava boa
parte dos militantes do acampamento em torno de um carro de som preto
estacionado em frente ao prédio da Gazeta, adornado com faixas que pediam a
Intervenção Militar. Pela lente da câmera pude ver Dona Gracinha em cima do
carro de som, trajando sua fantasia militar completa. E, enquanto aguardava um
colega cinegrafista fazer umas tomadas de cima do carro, fui
cumprimentado pelo próprio Carlos Alberto Augusto, que trajava um terno
impecável e usava um capacete de ferro da Revolução de 1932. Trazia um cartaz
falando "Quero ser ouvido pela Omissão da Verdade (sic)", e não deu
sinal algum de lembrar-se do que me havia dito sobre os protestos.
Posteriormente, enquanto escrevia este artigo, investiguei (olhando matérias veiculadas dentre outras fontes, no último segundo/IG, no R7, na página do Senado Federal e na Gazeta do Povo) sobre o que se tratava o tal cartaz, e descobri o que o ex-policial esqueceu de relatar naquela tarde de quarta. Conhecido nos tempos de delegado como "Carteira Preta", Carlos Alberto foi nada menos que braço direito de Sérgio Paranhos Fleury, que comandou com mão de ferro o antigo DOPS em São Paulo. Carteira Preta teria se dedicado à repressão entre 70 e 77, tendo se infiltrado nos movimentos pastorais da Igreja Católica e nos sindicatos do ABC. É um dos poucos agentes que se mantiveram na ativa após a abertura democrática (ainda era delegado ao conceder uma entrevista ao portal IG, em 2013) e é um dos pouquíssimos a serem réus em processo criminal por suas atividades durante o Regime. Teria participado da prisão do corretor de imóveis Edgar de Aquino Duarte em 1971, o qual foi dado como desaparecido em 1973, e foi o responsável por orquestrar as tocaias que assassinaram militantes e guerrilheiros contrários ao Regime, incluindo o Massacre da Chácara São Bento, em 1973. Ao IG, ele afirmou que faria tudo de novo.
De volta àquela quarta-feira. Pouco antes da foto de encerramento com
todos os membros, em meio a convites de
"Traga seus amigos!" e mais alguns elogios e incentivos à minha
posição de jornalista independente, um senhor de barba rala e grisalha, trajando
camiseta branca e com um crucifixo jesuíta de madeira no pescoço, me fala o
seguinte, por fora do gravador: "Sabe o que é tripinha? Aquele trocinho
que cavuca e arranca se torcendo do chão? Então, se você ferrar com a gente,
olha o que acontece", e fez o gesto de torcer e arrancar apontando para
minha virilha. E emendou depois, sorrindo debochado: "É brincadeira, tá?”.
Então tá...
OBS: Duas semanas após o protesto e três após meu descobrimento daquele acampamento, eis que dou uma passada lá naquela avenida por qualquer motivo, e constato que ele continua lá. Não parei para cumprimentar ninguém, mas você leitor está convidado a conferir essa doideira em primeira mão
Nenhum comentário:
Postar um comentário